Pânico do desconhecido: Cinema e epidemia
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*Fabio Claudio Tropea Desde os tempos dos gregos e a peste espalhada pelo sacrilégio de Édipo, a arte tem transfigurado a doença epidêmica como metáfora do ‘Outro’, o forasteiro, o desconhecido. Um inimigo invisível que não tem verdadeiros motivos ou planos de ação. Um inimigo que mina os mecanismos normais de percepção do perigo em […]

*Fabio Claudio Tropea

Desde os tempos dos gregos e a peste espalhada pelo sacrilégio de Édipo, a arte tem transfigurado a doença epidêmica como metáfora do ‘Outro’, o forasteiro, o desconhecido. Um inimigo invisível que não tem verdadeiros motivos ou planos de ação. Um inimigo que mina os mecanismos normais de percepção do perigo em nossa memória histórica, para a qual uma ameaça é mais concreta e perigosa quanto mais perto e visível ela está. O vírus, ao contrario, é impossível de detectar: viaja no ar, se esconde no transporte público ou em salas fechadas, alimenta-se de nossas ações diárias e pode já estar dentro de nós sem que estejamos cientes disso.

Ações triviais como tocar a boca, esfregar os olhos ou dar um abraço, de repente assumem um significado sinistro e cada momento social de contato com os outros – mesmo os mais inócuos – se carrega de uma atmosfera suspeita. Diante de um perigo que percebemos, mas não conseguimos identificar concretamente, nossos mecanismos de defesa nos levam a transferir nosso medo da ameaça para os que são mais próximos e mais visíveis: outros seres humanos, transformando-os em inimigos e nos quais desabafamos nossas ansiedades e frustrações.

O cinema, especialmente o horror ou a série B, abordou inúmeras vezes o tema do medo ancestral e da paranoia do ser humano, que se manifestam em todo o seu poder ofuscante quando o perigo quebra a distância segura e parece estar em todos os lugares ao nosso redor.

Um dos filmes mais interessantes e próximos a realidade que estamos vivendo é Contagio (Steven Soderbergh, 2011), que descreveu com muita eficácia a paranoia que se cria e cresce durante uma epidemia. A análise do medo no filme ressalta como de repente nossos comportamentos cotidianos podem se tornar letais: abrir uma porta com um puxador inofensivo se torna um gesto assustador e é angustiante perceber quantas vezes tocamos nossos narizes com as mãos sujas sem sequer reparar em isso.

O filme parece ter quase previsto a situação atual, entre aqueles que se trancam em casa e aqueles que minimizam; e não é coincidência que ele tenha subido nas classificas dos filmes mais assistidos naquele ano, ultrapassando o mesmo Harry Potter.

Dando um passo atrás, em 1956, A Invasão dos Ultras Corpos de Don Siegel (Vampiros de Almas no Brasil) contou uma invasão extraterrestre como metáfora para a paranoia americana macarthista contra o inimigo soviético. Embora não seja uma epidemia, os mecanismos do horror são muito semelhantes: pouco a pouco, todos os habitantes de uma insignificante cidade americana dos anos 50 são substituídos por idênticas cópias alienígenas. Assim, os rostos conhecidos de repente se transformam de reconfortantes e familiares em perigosos e ameaçadores.
Em 1964, o celebre ator Vincent Price protagoniza um arrepiante O último Homem na Terra, história de um homem sozinho que luta contra uma cidade cheia de pessoas infetadas por um vírus que transformou-lhes em vampiros. Lembra-se aqui que o morcego, muito ligado à figura do vampiro em nossa cultura humana, parece estar na origem do novo coronavírus. Em todo caso, esse filme inspirou o diretor George Romero na criação de uma das figuras fundamentais dos padrões narrativos da epidemia, ‘A Noite dos Mortos-Vivos’ (1968), o arquétipo do zumbi que se afirmará até hoje na imaginação cinematográfica e televisiva: um ser humano morto vivo, impulsionado por uma fome insaciável por tudo o que está vivo, que não brilha por inteligência ou velocidade, mas tem a principal força na enorme quantidade de infectados. Os zumbis estão por toda parte, ocupando um após o outro todos os espaços previamente reservados ao ser humano e infectam todas as entidades com as quais eles entram em contato.
No outro lado do planeta, o japonês Hayao Miyazaki, um autor muito distante do horror sangrento e niilista de Romero, confrontou-se com o tema do fim do mundo devido a uma pandemia. ‘Nausicaa do Vale do Vento’ (1984) é um desenho animado -muito apreciado e conhecido -que abre com um cenário apocalíptico: um cavaleiro equipado com um respirador e um traje anti-contágio se move entre as ruínas da civilização, onde o arrogante reino dos homens está enterrado sob um cobertor de poeira. Um esporo letal, na verdade, tornou o ar irrespirável e a civilização humana avançada é apenas uma memória distante.

O Mundo da Nausicaa simboliza a fragilidade e estupidez dos seres humanos, agora desprovidos de qualquer contato com a natureza e forçados a pagar as consequências de suas ações destrutivas e violentas. Um cenário que retornará alguns anos depois em Spillover (2012), um romance surpreendente de David Quammen que parece ter previsto o COVID-19 atribuindo a ascensão de um novo Coronavírus ao colapso dos ecossistemas terrestres.

O medo do vírus e do contágio está intimamente ligado ao terror pelo invisível e desconhecido, mas se traduz na prática em medo daqueles ao nosso redor que poderiam nos infectar. Esse é o medo investigado com muito dramatismo e dotes narrativas por ‘It Follows’ (em Brasil Corrente do Mal, de David Robert Mitchell, 2015), onde o mal é transmitido através da relação sexual e se desenvolve na paranoia de que nossos vizinhos poderiam nos abordar com a única intenção de nos prejudicar. Lentamente, a ansiedade permeia os espectadores, que começam a escanear cada sequência em busca de um sinal da presença do ‘monstro’, o inimigo, o perigo.

Um estado de espírito semelhante ao que os seres humanos estão começando a experimentamos todos os dias durante esta quarentena, alertados por cada leve sinal associado aos sintomas do vírus, seja uma máscara ou uma tosse.

Porém, alguns pensadores e analistas do tema epidemia, afirmam que o medo do fim do mundo é símbolo de uma angústia mais ampla e indefinida: o medo da mudança. Se diz que o estado atual da pandemia (palavra grega que significa literalmente doença de todos), põe em questão a própria fundação de nossa sociedade, forçando-nos a questionar nosso modo de vida e todas as nossas certezas. As metáforas construídas a partir dos títulos apresentados, apenas uma amostra de uma longa lista de títulos antigos e contemporâneos, referem-se a uma mudança imposta desde o exterior, o Outro: algo que não sabemos, não vemos e não podemos controlar. Uma mudança que aterroriza porque está instintivamente associada ao perigo e à morte, mas que no fundo é a única chance de sobreviver: se adaptar ou morrer.

* Semiólogo, escritor, palestrante e analista das linguagens da comunicação, graduado em Sociologia e Jornalismo em Urbino (Itália) e doutor em Comunicação na Universidade Autónoma de Barcelona, Espanha. Contato: fabioclaudiotropea@g.mail.com
Jornal Nova Fronteira