POLIGAMIA CONTROLADA (III): OBJEÇÕES RELIGIOSAS
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A monogamia se insere no âmbito da disciplina (do Magistério Ordinário, isto è aquilo que teria sido ensinado sempre a todos, em todos os tempos, e, em todos os lugares).

Ronaldo Ausone Lupinacci*

No artigo anterior a temática do título acima foi abordada sob o ângulo filosófico (do Direito Natural) entretanto, as principais objeções à poligamia provém de argumentos de índole religiosa. Sendo eu católico apostólico romano não poderia ignorá-las. Em tal contexto importa salientar, primeiramente, que o católico desfruta de ampla liberdade de pensamento naquilo que não colide com a doutrina da Igreja (Credo, Pai Nosso, Mandamentos e Sacramentos), com os dogmas declarados no Magistério Extraordinário, e com aquilo que foi ensinado pelo Magistério Ordinário de modo uniforme ao longo dos séculos.

A monogamia se insere no âmbito da disciplina (do Magistério Ordinário, isto è aquilo que teria sido ensinado sempre a todos, em todos os tempos, e, em todos os lugares). Donde concluo ser lícito opinar contrariamente àquela disciplina restritiva, porque a monogamia geral compulsória só passou a vigorar depois do Concílio de Trento (1540-1560), embora consistisse na regra desde Adão e Eva, porém amenizada como se infere das vidas de varões veneráveis, principalmente Abrahão.. De qualquer forma, embora estando eu convicto acerca do acerto de minhas afirmações, delas abrirei mão se demonstrado cabalmente eventual erro. Isso não acontecerá em breve, em decorrência da crise da Igreja. Todavia, por mais respeitáveis que possam ser as opiniões contrárias à minha, ouso discordar de seus defensores. Analisarei a seguir as lições do Padre Royo Marin – publicadas pelo conhecido Padre Paulo Ricardo – das quais discordo em parte[1], apesar de que constituem uma síntese do pensamento católico tal como vem prevalecendo há séculos

Em sua “Quarta Conclusão (a segunda e a terceira não interessam diretamente à tese aqui desenvolvida), Royo Marin admite que a poligamia simultânea não se opõe “totalmente” ao Direito Natural, mas impede “absolutamente” à sacramentalidade do matrimônio, conclusão que reputo falsa porque, a meu ver, tanto a primeira união como as subseqüentes devem ser ornadas pelo caráter sacramental, até porque indissolúveis, posto que não cabe a comparação entre o liame de Cristo com a Igreja, e o liame entre homem e mulher por serem coisas completamente diferentes. A comparação é meramente simbólica, anotando-se que a Igreja militante nem sempre foi fiel a seu Fundador, do que é exemplo a atual crise de apostasia.

A quinta conclusão do Padre Royo Marin, sustentada no magistério de São Tomás de Aquino, também é errônea, ou, ao menos se acha mal formulada, com base na palavra insuficiente de um único Papa (Inocêncio III).

Disse São Tomás de Aquino que a lei proibitiva da posse de mais de uma mulher não seria de instituição humana, mas divina; porém “jamais foi promulgada oralmente ou por escrito”[2], pelo que somente Deus pode conceder dispensa mediante uma inspiração interna. Ora, se somente Deus pode dispensar da lei da monogamia, não podem os homens imiscuir-se em tais “inspirações” para vedar uniões poligâmicas, o que significa que nem a legislação canônica, nem a penal, nem a civil têm força moral para impedir que um homem possua mais de uma mulher. São Tomás argumenta complementarmente supondo que a “inspiração” que moveu os patriarcas se devia à necessidades da época, de aumentar a população. A suposição é frágil, porque segundo o estudo científico de sociologia do Padre Leclercq a poligamia resulta em diminuição e não em aumento da população (Jacques Leclercq[3], “A Família”, Editora Quadrante, da Universidade de São Paulo).

A verdade é que a hostilidade devotada à poligamia tem sua razão de ser porque a união simultânea de um homem e mais de uma mulher, se admitida sem restrições, resultaria em abusos oriundos principalmente da lascívia[4]. Porém castidade e poligamia controlada não se opõe, posto que o dever de fidelidade subsiste para o homem com relação a todas as suas mulheres, tanto mais – segundo entendo – que as uniões sucessivas devem ser todas ornadas pelo sacramento matrimonial, assegurada a sua indissolubilidade[5].

As ações humanas devem ser guiadas pela principal virtude que consiste no amor de Deus. Creio que nisso consistiu a “inspiração” dos patriarcas reputados santos. A reta razão os levou a concluir que por tais ou quais motivos poderiam tomar mais de uma mulher. Isso transparece muito claramente da conduta de Abrahão, já que Sara era estéril. Já não transparece claramente de outros varões polígamos (Jacó, Elcana, Davi, Joás, etc.).

Sob outro aspecto do assunto quer me parecer que a união poligâmica – do ângulo meramente moral – é de fundamento estritamente subjetivo, vale dizer de decisão livre e soberana do homem e das mulheres que se reuniram. Do ângulo jurídico, contudo, só poderia ser admitida se o homem provar que pode sustentá-las e assisti-las (todas), equitativamente[6].

Subsiste uma dúvida sobre o motivo pelo qual Nosso Senhor Jesus Cristo deixou de aludir à poligamia, ao passo que condenou expressamente o divórcio[7]. A dúvida, todavia, pode ser facilmente desfeita. Ora, no episódio da mulher adúltera está claro que os fariseus pretendiam enredá-lo. Por isso falou pelo silêncio…deixando-nos o encargo de, pela inteligência, resolver a questão. Se condenasse a poligamia, iria contra a permissão divina, e, os judeus hipócritas acusá-lo-iam de injuriar Abrahão e os demais patriarcas; caso a admitisse os mesmos judeus o teriam acusado de disseminar a luxúria, e, depois se aproveitariam para mergulhar na incontinência. Por isso silenciou. Independentemente das digressões filosóficas e religiosas vai aqui um desafio aos que rejeitam a poligamia controlada:

1.º) Como resolver o problema da “sobra” de mulheres[8]? Estariam assim condenadas milhares de mulheres a abrir mão de seu principal atributo qual seja a maternidade? Isso não é nada fácil a exemplo das filhas de Lot mencionadas na Bíblia.

2.º) Como remediar a concupiscência[9] (uma das finalidades do matrimônio) se isso não for possível pela via monogâmica? Estariam assim os homens e mulheres impedidos de copular obrigados a obedecer a uma continência perpétua, dificílima?

Ora tais ficções explicam em boa parte as desordens atuais seja porque é impossível suprimir o instinto maternal, seja porque é impossível estabelecer a continência obrigatória e perpétua ainda que sob açoite.

De tais ficções se origina a hipocrisia geral, pela suposta obediência a regras que poucas pessoas observam[10]. Com efeito a infidelidade masculina é mal crônico, e, seria grandemente amenizado com a posse de mais uma mulher. Este ponto reclama maior aprofundamento, contudo incompatível com o estreito espaço jornalístico.

Ainda dentro da perspectiva religiosa, se pode pensar que a pequena parcela da opinião pública que ainda preza a virtude da castidade devota hostilidade subconsciente à poligamia por supor que viola aquela virtude. De si não viola porque o ato sexual – que  se presume mais freqüente nas uniões poligâmicas – não agride a castidade se realizado segundo as leis da natureza e da moral. Basta ver o enorme número de santos canonizados que foram casados.

A Igreja ensina que a castidade absoluta (virgindade) é superior ao estado matrimonial. Isso é verdadeiro se vista a questão sob a ótica da perfeição individual. Mas, é falso no plano geral porque a imensa maioria das pessoas opta pelo casamento, de modo a cumprir o mandamento “Crescei e multiplicai-vos e enchei a Terra” prescrito nas Sagradas Escrituras, e é impossível para a Humanidade cumpri-lo se não existir o matrimônio e a conseqüente coabitação. De outra parte, a castidade absoluta exige a vocação específica, especialíssima, por pressupor virtudes heróicas das quais não se pode exigir do comum dos seres humanos[11].

Ainda quanto à virtude da castidade – que aparece no pano de fundo do estudo sobre a poligamia – é preciso ressaltar que deve ser obtida pela convicção de sua excelência e superioridade, e não pela mera abstenção quanto às relações sexuais (continência). Por isso disse Nosso Senhor Jesus Cristo: “Quem puder compreender compreenda”.

É possível, pois, entender que a poligamia controlada foi permitida por Deus como, por assim dizer, “válvula de escape” para suprir deficiências e imperfeições diversas advindas do pecado original. Os fatos comprovam o acerto da permissão divina, e os fatos constituem a prova intelectual mais sólida, superior aos raciocínios e ao argumento de autoridade, segundo São Tomás de Aquino.

Haveria muito mais a dizer, mas o padrão de texto jornalístico impede a expansão. Por outro lado, como o assunto é proposto para reflexões e medidas futuras – já que o modelo de monogamia geral obrigatória está, e, continuará por mais algum tempo em vigor, no plano jurídico positivo – encerro com este artigo a série de três, até porque pretendo transpor em livro aquilo que se acha comprimido nos três textos, com dados muito mais ricos. Considerando, porém, a demora na reformulação da legislação canônica, penal e civil penso que no período de transição seja lícito o concubinato[12], desde que adotado com os requisitos do matrimônio, Por outro lado, a gravíssima situação atual do Pais e do mundo reclama o exame de muitas outras questões mais relevantes e urgentes que vêm sendo abordadas preferencialmente nesta coluna, mas que se distanciam do tema da poligamia.

Finalizo dizendo que terminei a tarefa em plena paz de alma, mesmo discordando de católicos como eu, e, de protestantes e judeus. Agradecerei as críticas e objeções fundadas e sérias que surgirem, porém irei ignorar discordâncias ocas ou preconceituosas.

Oportunamente escreverei sobre as excelências do matrimônio e da conseqüente vida de família, onde se pode viver a plenitude do imperfeito amor humano, bem como sobre a criação e educação dos filhos.

* O autor é advogado e pecuarista.

[1] https://padrepauloricardo.org/blog/o-que-pensar-sobre-a-poligamia
[2] A promulgação é da essência da lei, segundo São Tomás pela simples razão de que ninguém é obrigado a preceito cujo conhecimento não lhe foi proporcionado.
[3] Sacerdote católico, Professor de Sociologia na Universidade de Lovaina, Bélgica)
[4] Segundo milenar princípio jurídico “abusus non tollit usum”, isto é o abuso não veda o uso.
[5] Isto é, um homem poderia possuir mais de uma mulher, mas não poderia repudiar nenhuma delas, rompendo o vínculo.
[6] Tal é a regra dos muçulmanos do Marrocos e do Líbano que podem ter até quatro mulheres.
[7] O divórcio é intrínseca e extrinsecamente maléfico por violar o direito divino e o Direito Natural ao impedir ou dificultar enormemente a criação e a educação dos filhos.
[8] https://www.youtube.com/watch?v=3Es4IGyYO3A, informa o desequilíbrio populacional entre homens e mulheres em diversos países da Europa. Isso explica a profusão de mulheres daqueles países que se oferecem nos sites de relacionamento existentes na Internet.
[9] A concupiscência consiste no desejo intenso e desordenado de prazeres, físicos mormente o sexual, de todos o mais veemente.
[10] Plínio Corrêa de Oliveira censurou acerbamente a hipocrisia da sociedade que facultava aos homens todas as imoralidades e as vedava às mulheres ( em https://www.traditioninaction.org/religious/c011rpPurity03.html) Hoje, porém, também as mulheres se acham contaminadas.
[11] Santa Mariana de Jesus Torres, notável pelas as profecias a respeito de nossa época (séculos XX e XXI) afirma ser erro gravíssimo admitir na vida religiosa (dos conventos) pessoas sem vocação para tal.
[12] O concubinato também foi permitido no Antigo Testamento, mas foi praticado sem o rigor exigível. De outro lado se admitida a união poligâmica nos termos aqui propostos deixaria de haver motivo plausível para o concubinato.
Jornal Nova Fronteira