O português não é para principiantes
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Na Internet está circulando um texto (não sei bem quem é o autor, como quase tudo o que vemos no facebook) que testemunha muito bem a complexidade hiperbarroca do português, uma característica que complica a vida aos nativos e sobre tudo aos pobres estrangeiros que nem eu.

* Fabio Claudio Tropea

Na Internet está circulando um texto (não sei bem quem é o autor, como quase tudo o que vemos no facebook) que testemunha muito bem a complexidade hiperbarroca do português, uma característica que complica a vida aos nativos e sobre tudo aos pobres estrangeiros que nem eu. Eis aqui o magnifico trava línguas (e cabeça)s: “A diferença entre doida e doída é um acento. Assento não tem acento. Assento é embaixo, acento é em cima. Embaixo é junto e em cima separado. Na sexta comprei uma cesta logo após a sesta. É a primeira vez que tu não vês. Vão tachar de ladrão se taxar muito alto a taxa da tacha. Asso um cervo na panela de aço que será servido pelo servo. Vão cassar o direito de caçar de dois pais no meu país. Por tanto nevoeiro, portanto, a cerração impediu a serração. Para começar o concerto tiveram que fazer um conserto. Ao empossar permitiu-se à esposa empoçar o palanque de lágrimas. Uma mulher vivida é sempre mais vívida, profetiza a profetisa.

Com certeza, muitos leitores acharam complicada a leitura desse texto, e outros exclamaram: ”Olha o difícil que pode chegar a ser o português!” Na verdade, existem idiomas bem mais complicados. Por exemplo, o idioma javanês, na Indonésia, que possui um nível de complexidade realmente prodigioso. Ele tem três estilos distintos, com vocabulários e regras gramaticais próprias: o Ngoko (discurso informal, usado entre amigos e parentes próximos); o Madya (usado entre estranhos) e o Krama (estilo educado e formal para usar em ocasiões cerimoniais). Salvando as distâncias, no português do Brasil acontece algo parecido. A gramática que se usa no dia a dia é bastante diferente daquela que se usa quando se escrevem textos ou se faz uma apresentação profissional ou acadêmica. Na linguagem cotidiana, por exemplo, cortamos palavras, ignoramos plurais, usamos verbos auxiliares ao invés de alguns tempos verbais. No futuro, usamos “vou falar” em vez do correto “falarei” , e no condicional “falava, se puder” em vez de “falaria, se pudesse”. Qualquer pessoa que conjugasse os verbos na forma considerada “culta”, por exemplo numa padaria, iria ser considerada extremamente esnobe ou talvez suspeita de não ser realmente brasileira. Ao mesmo tempo, uma pessoa que se comunica com a linguagem cotidiana num e-mail formal para toda a empresa,
provavelmente não seria levada a sério. E além disso, temos diferenças de sintaxe (“me ajude” por “ajude-me”), de pronomes (“eu lhe ligo” ou “eu te ligo” por “eu ligo para você”; “a gente” por “nós”).
Os linguistas chamam esse fenômeno diglossia endógena, o seja língua (glossia) com dois (di) registros diferentes de uso dentro de um mesmo território. E os linguistas nos ensinam também que os erros ou as formas coloquiais simplificadas são tolerados e inclusive aceitos na comunicação oral, mas totalmente banidos na comunicação escrita. Aqui o peso da cultura alta e letrada é muito maior. Em todo caso, nesse âmbito existem diferencias notáveis nos idiomas conhecidos. A língua mais falada do mundo, o inglês americano, é muito mais tolerante, e aceita na escrita formas simplificadas, como por exemplo nite (em vez de night) para dizer noite. O importante, para eles, é se entender, já que a ortografia e a gramática são considerados instrumentos elásticos e técnicos de descrição da língua falada. O português, como outras línguas de derivação latina, mas com uma intensidade e devoção especial, foi construindo ao longo dos séculos uma gramática monumental e complicadíssima, difícil de apreender e aplicar corretamente inclusive nas classes favorecidas e por isso mesmo símbolo de prestigio e distinção na estrutura social. A diglossia entre universo gramatical puro e prática quotidiana da língua foi abrindo no mundo lusitano colonial um báratro entre os dois usos do idioma, o aristocrático e o popular.

As dificuldades que enfrenta quem aprende essa forma oficial e “culta” do idioma gramaticalmente correto são as mesmas de quem se enfrenta a labiríntica e misteriosa burocracia brasileira. Porque gramática e burocracia foram criadas para pôr ordem nas coisas do idioma e do Estado, mas as suas complicações parecem frequentemente atrapalhar mais do que facilitar os assuntos. E separar mais do que juntar as pessoas. O excesso de regras resulta ser, na gestão tanto do Estado quanto da língua, disfuncional à aprendizagem, e estimula o cidadão, toda vez que puder, a utilizar o jeitinho brasileiro, ou seja a inobservância das regras. Um exemplo flagrante de tudo isso é o que nos oferecem as mídias sociais da Internet. Fora da vigilância cautelosa do professor ou do notário, o cidadão começou a escrever suas mensagens, sobre tudo no whatsapp, ignorando, (consciente ou inconscientemente) qualquer regra ortográfica e sintática, se sentindo finalmente livre das regras e das cadeias da linguagem oficial. Se eu tivesse que corrigir todos os erros espantosos de amigos e conhecidos que leio nos grupos da mídia social, perderia muitas amizades, mais das que estamos perdendo por brigas ideológicas. O português barroco e suntuoso não é para amadores, certo, mas tampouco é para mensagens instantâneas.

* Semiólogo, escritor, palestrante e analista das linguagens da comunicação, graduado em Sociologia e Jornalismo em Urbino (Itália) e doutor em Comunicação na Universidade Autónoma de Barcelona, Espanha. Contato: fabioclaudiotropea@g.mail.com

Jornal Nova Fronteira