Pular ou assistir, eis a questão
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Voltou o carnaval em Barreiras. E voltou, como dizem os espanhóis, “por todo lo alto”, (grandiosamente): boas bandas, intensa participação popular, alegria e bom humor e, evidentemente, rios de geladinha nas gargantas dos fregueses. Conforme vão passando os dias da festa, na minha cabeça vão ressoando as palavras do meu velho professor de antropologia: “O carnaval é mais desenvolvido nos lugares menos desenvolvidos.

 

* Fabio Claudio Tropea
ftropea8@msn.com
fabioclaudiotropea@gmail.com

Voltou o carnaval em Barreiras. E voltou, como dizem os espanhóis, “por todo lo alto”, (grandiosamente): boas bandas, intensa participação popular, alegria e bom humor e, evidentemente, rios de geladinha nas gargantas dos fregueses. Conforme vão passando os dias da festa, na minha cabeça vão ressoando as palavras do meu velho professor de antropologia: “O carnaval é mais desenvolvido nos lugares menos desenvolvidos. Quanta mais desigualdade tem um País, mais fastuoso e desenfreado é o carnaval. Um sonho de alegria e liberação, um povo que toma a rua por alguns dias para se esquecer das dificuldades reais, dos políticos corruptos e as tremendas injustiças da vida cotidiana”. Como dizia aquela velha canção, “Pra tudo se acabar na quarta-feira”.

Nada novo debaixo do sol. O carnaval nasce há muitos séculos na velha Europa católica expressamente com esse espírito liberatório das festas populares. O cristianismo reciclou os antigos ritos pagãos para a própria liturgia dos dias que antecedem o início da quaresma, culminando na terça-feira gorda. Eram festas com abundantes libações, como as dionisíacas gregas ou os bacanais romanos (eis a origem da palavra “bacana”!). O próprio termo carnaval tem sua origem no latim medieval: carnem levare, que significava tirar a carne da quarta-feira de cinzas, isto é, a hora em que começava a abstinência. O cristianismo introduz essa ideia da última permissão antes do sacrifício sucessivo (a quaresma), mas já nos tempos antigos a festa se centrava no excesso e a inversão da vida normal: o disfarce, a música e a dança descomedida: a folia. Essa palavra, tão representativa do carnaval brasileiro, significa justamente loucura (folie em francês) e chegou ao Brasil procedendo de Portugal, como exemplo de dança “licenciosa”.

 

O grande estudoso do folklor Mircea Eliade, afirma que “Durante o carnaval são excluídas todas as barreiras hierárquicas: o rico e o pobre participam ambos da festa, a diferença entre os dois parece ser suspensa, há um clima de familiaridade absoluta, no gozo da celebração; homens e mulheres cuidadosos e reservados durante o ano, deixam de lado seus escrúpulos, sua gravidade, e juntam-se à diversão do banquete e do baile. As hierarquias são não só suprimidas, mas invertidas” (Imagens e símbolos, 1958). Eis aqui uma amostra, só uma, da atualidade dessas clássicas reflexões antropológicas: infelizmente, a sociedade brasileira, salvo escassas exceções, é homofóbica. No entanto, durante o carnaval, a quantidade de homens fantasiados de mulher é simplesmente impressionante.

A propósito, o baile de máscaras durante o carnaval foi introduzido oficialmente na Itália pelo Papa Paulo II no ano de 1458. Depois ganhou força nos séculos 15 e 16, devido à influência do teatro da Commedia dell’Arte, cujos personagens estão na origem de muitas das máscaras típicas do carnaval europeio: Arlequim, Pulcinella, Pantalone, etc. Elas representam tipos físicos divididos em duas categorias: os sérios – os enamorados (sem máscaras) e os ridículos ou os cínicos (com máscaras). A cultura religiosa quis contrabalancear, com esses personagens, as máscaras que parodiavam ironicamente as autoridades.

No Brasil, o carnaval entrou pelas mãos dos portugueses. O entrudo, importado dos Açores, foi o precursor. Grosseiro, violento, imundo, constituiu a forma mais generalizada de brincar no período colonial e monárquico, mas também a mais popular. Consistia em lançar, sobre os outros foliões, baldes de água, esguichos de bisnagas e limões-de-cheiro (feitos ambos de cera), pó de cal (uma brutalidade, que poderia cegar as pessoas atingidas), vinagre, groselha ou vinho e até outros líquidos que estragavam roupas e sujavam ou tornavam malcheirosas as vítimas. Esta estupidez, porém, era tolerada pelo imperador Pedro II e foi praticada com entusiasmo, na Quinta da Boa Vista e em seus jardins, pela chamada nobreza… E foi livre até o aparecimento do lança-perfume, já no século XX, assim como do confete e da serpentina, trazidos da Europa.

Me deixe, meu querido leitor, enfiar outra curiosidade nessa crônica carnavalesca. O confete na Italía se chamou coriandolo, que é o termo que traduz o coentro. “Confetto”, em italiano, era um pequeno bombom de açúcar, que continha uma semente de coentro. Durante o carnaval, no renascimento, os aristocratas jogavam esses confetes aos pobres.

Mas não quero continuar como historiador¹, prefiro uma aproximação mais sociológica ao carnaval, refletindo sobre o que acabo de observar em Barreiras. De uma forma muito geral, queria lembrar ao leitor que a humanidade inventou, há muitos séculos, dois tipos de diversão coletiva. O carnaval pertence a uma das forma mais antigas, aquela que traça um círculo no território da comunidade e diz: aqui dentro do círculo vamos fazer uma festa, e todos os que estão dentro do círculo somos os protagonistas da festa. Disfarçado, embriagado por vinho, cerveja ou outras substâncias estimulantes, o indivíduo compartilha este protagonismo com todos os que decidiram estar dentro do círculo.

Más de uma forma paralela, o ser humano pensou que dentro de este círculos podiam se colocar uns personagens mais preparados para oferecer diversão ao polvo. Dentro do círculo, nessa segunda forma festiva, temos agora uns indivíduos especiais: gladiadores, cantores, futebolistas, e um imenso etecetera. Os indivíduos que estavam dentro do círculo, agora estão fora, expelidos da festa mas comodamente sentados e emocionados pelas coisas que se estão representando dentro do círculo. Nasce assim o conceito de espetador, o que assiste ao espetáculo. A palavra “espetáculo” é derivada do latim “spectaculum“, que significa “algo para se observar, algo digno de ser visto”. A tecnologia ajudou muito a criar novas e cada vez mais excitantes formas de espetáculos, mas tudo isso já está presente no coliseu ou no circo que, diga-se de passagem, tem esse nome devido justamente a forma circular de sua pista. Nasce e se consolida uma sociedade do espetáculo e dos espetadores, que viram seres passivos de cara a celebração festiva. “O meu time”, para um torcedor, não é o time com o que eu jogo junto, senão o time cujas ações acompanho no estádio ou na televisão.

Tudo isso aconteceu também no carnaval brasileiro e na versão mastodôntica e maravilhosa, porque não admiti-lo, do mundialmente conhecido Rio de Janeiro. O sambódromo é, no fundo, a expulsão do indivíduo de dentro do círculo da festa. Espetáculo grandioso, mas separador absoluto entre ator e espetador. De pular a assistir, da rua ao camarote, essa é a história do carnaval, devido a potência da indústria do espetáculo. Nem um décimo do povo participa hoje ativamente do carnaval — ao contrário do que ocorria em sua época de ouro, do fim do século XIX até a década de 1950. Como bem afirma Luís da Câmara Cascudo, etnólogo, musicólogo e folclorista, “o carnaval de hoje é de desfile, é carnaval assistido, paga-se para ver. O carnaval, digamos, de 1922, era compartilhado, dançado, pulado, gritado, cutucado. Agora não é mais assim, é só para ser visto”.

E o carnaval de Barreiras? Está navegando entre uma e outra forma de festa. Muitos amigos, me falaram que preferem a do cais, a mais tradicional e a que todo barreirense de nascimento ou ocasião pula com desfrute e voluptuosidade. Mas muitos outros, casados e com famílias, também admitem que o carnaval da avenida, assistindo ao desfile dos trios elétricos sentados na mesa e “longe da confusão” é muito mais cômodo e prático. A festa “cômoda” é filha da sociedade do espetáculo, a festa pulada é para quem ainda quere jogar e não só observar, possivelmente fantasiado de Adão ou Pablo Vittar. Me deixem acabar com uma diferença notável entre o carnaval europeu e o brasileiro, para mim muito significativa. Na Europa, os indivíduos (quase sempre as crianças, os adultos são muito sérios e aburguesados) para o carnaval se disfarçam, o seja fingem ser o que não são. Aqui no Brasil não é disfarce, é fantasia. No disfarce, tem uma declaração de falsidade, e uma vitória da realidade. Na fantasia, é um triunfo da imaginação e a criatividade, embora só seja até quarta-feira.

¹O leitor pode consultar sobre o tema um excelente livro de Hiram Araújo, Carnaval. Seis Milênios de História.
Jornal Nova Fronteira