Presépios e lapinhas, entre sagrado e profano
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Uma das surpresas mas frequentes dos habitantes do “velho mundo” quando ficam morando no novo, é a forte presença de costumes e tradições europeias. Claro, para um italiano como eu, essa surpresa é constante, devido a massiva imigração dos meus compatriotas nesta terra brasileira.

 

* Fabio Claudio Tropea
ftropea8@msn.com
fabioclaudiotropea@gmail.com

Uma das surpresas mas frequentes dos habitantes do “velho mundo” quando ficam morando no novo, é a forte presença de costumes e tradições europeias. Claro, para um italiano como eu, essa surpresa é constante, devido a massiva imigração dos meus compatriotas nesta terra brasileira. Ainda lembro o meu assombro a primeira vez que viajei de Roma a São Paulo. Comprei numa banca do aeroporto o jornal “Corriere dela sera” e vi que era uma versão genuinamente local, feita no Brasil. Esse jornal tinha uma tiragem diária de 4oo mil copias!. Mais tarde, os meus anfitriões paulistas me levaram a experimentar uma “auténtica” pizza italiana numa cantina (Jardim de Napoli). Resultado: o melhor calzone di ricotta da minha vida!

A relação entre tradição e evolução nos costumes brasileiros é um tema realmente fascinante que envolve uma quantidade enorme de temas e âmbitos diferentes, da culinária ao idioma, a religião, a escola, e um longo etecetera. Tem tradições europeias que se mantem e reforçam pelo apego das comunidades (ex. as festas juninas). Outras que se modificam e se entrelaçam entre elas seguindo o bem estudado fenômeno do sincretismo (ex. os santos católicos e os orixás). Outras que se conservam quando já desapareceram a Europa (ex. a língua pomerana). E outras que literalmente se inventam, como as fontes de vinho de Caxias do Sul durante as vindima ou os “rondelli”, uma pasta caseira recheia presumidamente italiana que lá ninguém conhece.

Mas aqui e agora, dada a atmosfera natalina, gostaria me centrar na tradição dos presépios, um tema que envolve todos os casos antes mencionados. Como todo o mundo sabe, trata-se duma tradição muito antiga, que se remonta a cultura etrusca do século VIII a.C. Os etruscos passaram aos romanos essa tradição de montar altares domésticos com figurinhas de barro dos ancestres, para propiciar a proteção do lar. Os romanos chamaram esses ancestres protetores de “Lares” (de aqui vem a palavra portuguesa “lar”!). Logo, o cristianismo integrou essa costume pagã de fazer figurinhas domesticas e criou, com fins claramente pedagógicos, a tradição do praesepium, que quer dizer curral, estábulo ou lugar de recolha de gado. Uma lenda conhecida conta que o primeiro presépio do mundo foi armado por São Francisco de Assis, em 1223. Mas a tradição virou muito importante sobre tudo nos séculos XVI e XVII, em Nápoles e na Sicília.

Os artesãos locais começaram a construir figurinhas especiais (“pastori”, em italiano) para realizar presépios e adorar a natividade de Cristo, primeiramente nas iglesias e logo nas casas particulares . No curso desses dois séculos, formou-se a tradição de preparar presépios em casa, do 8 de dezembro (dia da Imaculada) até o 6 de janeiro (a Epifania). Nápoles e a Sicília eram governadas em aqueles tempos pelos espanhóis, assim que foram eles que levaram essa costume na península ibérica e logo no Portugal, até alcançar altos níveis de devoção e de qualidade artística na realização de presépios, inclusive mecânicos e com meticulosas reconstruções das paisagens palestinas originarias. Quem esteja viajando no Portugal tem a oportunidade de conhecer o maior presépio em movimento do mundo, em S. Paio de Oleiros. O presépio gigantesco tem cerca de 7.500 peças e uma dimensão de 3.500 metros quadrados! Espanha e Portugal exportaram a tradição do presépio natalino em tudo o continente americano, desde México até Argentina. Esta difusão começou com os franciscanos, mas não houve uma única missão católica que não tivesse dado a sua contribuição para expandir o amor pela representação plástica do nascimento do Redentor.

Dizem que Já em 1532, mais ou menos, o padre Jose de Anchieta, ajudado pelos índios, já modelava em barro pequenas figuras representando o presépio, com o propósito de incutir-lhes esta tradição. Inicialmente, copiando ou se inspirando nos modelos importados de Portugal e Espanha, sobre tudo no sul do País. No nordeste, a arte presepista adquiriu uma fisionomia própria e o índio, o negro, o caboclo, a fauna, a flora, a mitologia afro-americana, etc., foram transformando as influencias recebidas em cenas comuns da vida diária no território . A Bahia é um dos Estados onde mais cresceu e se difundiu essa tradição, graças também ao seu precioso folclore.

O presépio aqui recebeu inclusive um novo nome, o de lapinha: José e Maria , para permitir o iminente nascimento do menino Jesus, se recolheram em uma gruta ou lapa. A lapa é justamente uma “pedra ou laje que ressaindo de um rochedo, forma um abrigo”. Assim lapinha, isto é pequena gruta. Mas não mudou só o nome: a lapinha virou sobretudo um ritual de dança. Um grupo de pastoras fazendo as suas louvações na noite de Natal, cantando e dançando diante do presépio, divididas por dois cordões – o azul e o encarnado – as cores votivas da Nossa Senhora e de Nosso Senhor. Em outras palavras, uma ação teatral de tema sacro. Uma tradição europeia renovada, já que na Itália, na Espanha e no Portugal, nos nove dias anteriores ao 25 de dezembro (a “novena”), as famílias cantam diante do presépio canções de celebração da natividade. A minha infância foi cheia dessas celebrações natalinas sacro-profanas: depois das canções, as crianças ganhavam doces e fruta seca.

Voltamos a lapinha. Aqui também, o profano se entrelaça com o sagrado. Primeiro, porque a disputa entre os dois cordões se aproveitou como forma de receber fundos para as paróquias, e a cotação de cada cordão ia subindo de acordo com as doações pecuniárias de seus defensores. Segundo, a lapinha gerou (e degenerou, para os puristas) em pastoril, umas danças executadas por mulheres sobre um tablado ao ar livre, com caráter declaradamente satírico. As danças são dirigidas por um personagem cômico: o cebola, o velho, o saloio, o marujo, etc. A cultura popular sempre gostou de misturar o sagrado com o profano. Aqui e no mundo inteiro. Uma das figurinhas mais presentes no presépio catalão é “el caganer”, um senhor de calça baixada que em plena adoração do Senhor se vê vencido por a urgência irrevocável de defecar. Irreverencia e dessacralização, sim, mas também ato de demonstração das limitações humanas diante do Onipotente.

* Italiano por nascimento e cidadão do mundo por vocação, sou semiólogo, escritor, docente, palestrante e analista das linguagens da comunicação. Sou graduado em Sociologia e Jornalismo em Urbino (Itália) e doutor em Comunicação pela UAB, Universidade Autônoma de Barcelona (Espanha), cidade aonde residi e trabalhei durante mais de 25 anos.
A minha carreira, em poucas linhas: depois da graduação, entrei estagiário e assistente na universidade de Urbino. Depois ganhei uma bolsa na Espanha para estudar o sistema cultural das midia na fase de transição do país e me estabelecei definitivamente em Barcelona, desempenhando durante muitos anos atividade de professor universitário de semiótica, comunicação e educação e, por outro lado, consultor-analista profissional, nos campos das mídia, o marketing de produto e serviço e especialmente o mix de comunicação que compõe o branding.
Há três anos, por razões familiares, me mudei para o Brasil (Barreiras, Bahia). Aqui, continuo a minha atividade como consultor/pesquisador na área de comunicação e marketing, especialmente em São Paulo, e como docente, no Instituto Europeu de Design (IED, Rio de Janeiro e Brasília), a Universidade Dom Pedro II de Barreiras, a universidade IESB de Brasília, e a FAESA de Vitoria (Espírito Santo).

 

Jornal Nova Fronteira