Monarquia, ou a saudade do que foi
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Nos primeiros vinte e oito anos da minha vida, nasci e morei numa república, a italiana, que no ano de 1948, através dum referendum, expulsou sua jovem monarquia (1861), acusando-a de ter sido cúmplice com o fascismo e responsável moral da tragédia da guerra. Na atualidade, existe uma corrente muito forte de população que quer permitir a família real, os Savoia, voltar do exílio francês.

*Fabio Claudio Tropea
ftropea8@msn.com
fabioclaudiotropea@gmail.com

Nos primeiros vinte e oito anos da minha vida, nasci e morei numa república, a italiana, que no ano de 1948, através dum referendum, expulsou sua jovem monarquia (1861), acusando-a de ter sido cúmplice com o fascismo e responsável moral da tragédia da guerra. Na atualidade, existe uma corrente muito forte de população que quer permitir a família real, os Savoia, voltar do exílio francês.

 

Os sucessivos vinte oito anos da minha vida, fiquei morando num País com uma das mais velhas monarquias, a espanhola, que formou-se com o casamento de Fernando (de Aragão) e Isabel (de Castela e Leão). No 1492 essa monarquia expulsou o último reduto islâmico do sul da Península Ibérica e começou, como tudo o mundo sabe, um clamoroso processo de expansão na Europa e sobre tudo na América. Na Espanha, a casa real hoje está questionada, sobre tudo pelo comportamento ético de alguns familiares. Durante todos esses anos de permanência espanhola, eu morei em Barcelona, uma cidade que sempre teve aspirações republicanas e autonomistas. E tive que aprender catalão, o idioma querido dessa região e o símbolo principal da diferencia étnica. As relações entre Catalunya e Espanha nunca foram fáceis, mas nesses últimos anos as coisas pioraram muito, e na atualidade o governo espanhol chegou a aprisionar os dirigentes independentistas e claramente antimonárquicos do governo catalão.

No ano 2014, por questões familiares, cheguei no Brasil, e me dei conta de que este é um País republicano que sempre teve, e hoje mais do que nunca, muitas nostalgias monárquicas. No ano passado, numa enquete nacional 15 % dos entrevistados disseram concordar com a ideia de que o Brasil tenha um monarca. O jornalista e historiador Laurentino Gomes vendeu, num País que não se caracteriza exatamente por ser um pais de leitores de história, mais de dois milhões de livros com sua trilogia “1808”, “1822” e “1889”, em que conta a vinda de D. João VI para o Brasil, a Independência e a proclamação da República.

Tanto interesse pela história imperial do País esconde em realidade uma fascinação coletiva pouco racional, típica do “novo mundo”, para o universo fantasioso e onírico da aristocracia europeia, um mundo de tradições magníficas, palácios resplandecentes, fadas e princesas. Eu nunca tinha escutado tantas vezes como no Brasil os pais falando das filhas pequenas como as “princesas”. E assim comenta um jornalista a chegada no Brasil de Sua Majestade Silvia Renate Sommerlath, a rainha brasileira da Suécia: “Ela nasceu na Alemanha e vive há quase 34 anos, rodeada de serviçais, nos 604 aposentos do Palácio Real de Estocolmo… A vida na realeza começou quase como um conto de fadas… Foi assim que conheceu o então príncipe Carl Gustav, enquanto trabalhava no cerimonial… Eles se casaram quatro anos depois e começou uma vida sonhada por tantas cinderelas nacionais”.

Sempre dentro do mundo da narrativa jornalística, mas desta vez com outros interesses políticos, Dom Bertrand de Orleans e Bragança, bisneto da princesa Isabel, uma vida devotada unicamente à “restauração católica e monárquica” do Brasil, afirma numa entrevista que “a índole do povo é monárquica, porque a ordem natural das coisas é monárquica. As crianças nascem monarquistas e depois vão sendo corrompidas pela mãe, pelo falso ideologismo, e ficam republicanas”. Uma afirmação contundente e, evidentemente, muito opinável.

Mas voltamos ao terreno da ciência política. Os autores que defendem as vantagens da monarquia estão de acordo em conceituar essas vantagens em três blocos, que citarei em itálicos:

I- A Neutralidade. As monarquias garantem a neutralidade política do chefe de Estado. A casa real espanhola ou ainda mais a inglesa são um exemplo de como essas instituições estão localizadas fora da órbita destas dinâmicas, evitando infectar seus tecidos por partidarismo e sendo um eficaz moderador e árbitro das relações entre as diferentes instituições.
No Brasil, terra de alianças, parcerias e conivências legais e ilegais entre poderes, as garantias sobre essa neutralidade são realmente pouco consistentes e aflora inevitavelmente o velho ditado: quem vigia ao vigilante?

II- A figura do líder. O rei ou a rainha é o centro de gravidade da instituição monárquica. Tremendamente discutido e alvo de todas as críticas por seus privilégios, a fonte do seu poder e o sentido da sua existência está na Constituição. Dado que a instituição real não tem legitimidade democrática, o rei deve esforçar-se para escorar a legitimidade jurídica conferida pela Constituição através da legitimidade carismática. Isso significa seguir padrões elevados e exigências complicadas.
Pesquisei na literatura sobre os muitos netos, bisnetos e tataranetos dos Orleans e Bragança, não achei nem uma figura que pudesse aproximar-se a essa estatura política e moral desejada.

III- O papel da tradição. Quando se defende o modelo monárquico, dois são os elementos essenciais: a tradição e a cultura. Um País não pode esquecer a sua herança, sua história e de um dia para o outro cortar uma parte da sua identidade. Na nossa história, a construção das comunidades passou necessariamente pelas mãos do rei, e a memória permanece gravada na consciência, sendo uma poderosa imagem no imaginário coletivo. Desprezar a força da comunidade de uma ideia assim constituída, alimentada por valores como patriotismo e lealdade, é um erro que pode resultar em conflito e ruptura.

A história da realeza nesse País pertence ao passado, a republica se fundou, assentou e consolidou há já mais de 130 anos, no imaginário coletivo político tem já pouca cabida, inclusive menos que outro mito presente no País, o da incorruptibilidade do poder militar e das ditaduras.

Então, como podem sobreviver tantas fantasias sobre a restauração da monarquia, sendo um fenômeno que não aconteceu em nenhuma parte do mundo?

Uma primeira resposta, histórica. Maquiavel, há mais de 500 anos, considerava a república como o regime mais propício à realização do bem-comum. Ele escreveu que a forma monárquica não se adapta a povos em que predomine uma grande igualdade social e econômica. Mas também que não é possível instaurar uma república onde impere a desigualdade. Ficou claro?

Uma segunda, mais propriamente brasileira. O Brasil tem saudades do Império porque a monarquia oferece soluções prontas e hoje pede-se à uma sociedade historicamente preguiçosa que se organize ativamente para elaborar soluções. Dito de uma forma literária, aí entraria o lado Macunaíma do brasileiro (Mario de Andrade): “Ai que preguiça…”.

E finalmente, uma terceira razão, mediática. As redes televisivas nacionais, sobre tudo a Globo, realizam séries e novelas históricas aonde a aristocracia é tratada com carinho e inclusive admiração, ou no máximo com simpática ironia, como quem diz “os nossos defeitos vem dos nossos ancestrais, os nobres portugueses”. Não esqueçam, minha gente, que os artistas mais populares das artes populares, a música e o futebol, são chamados de reis. Alguém sabe me dizer quem dos dois é mais rei, Pelé ou Roberto Carlos?

* Italiano por nascimento e cidadão do mundo por vocação, sou semiólogo, escritor, docente, palestrante e analista das linguagens da comunicação. Sou graduado em Sociologia e Jornalismo em Urbino (Itália) e doutor em Comunicação pela UAB, Universidade Autônoma de Barcelona (Espanha), cidade aonde residi e trabalhei durante mais de 25 anos.
A minha carreira, em poucas linhas: depois da graduação, entrei estagiário e assistente na universidade de Urbino. Depois ganhei uma bolsa na Espanha para estudar o sistema cultural das midia na fase de transição do país e me estabelecei definitivamente em Barcelona, desempenhando durante muitos anos atividade de professor universitário de semiótica, comunicação e educação e, por outro lado, consultor-analista profissional, nos campos das mídia, o marketing de produto e serviço e especialmente o mix de comunicação que compõe o branding.
Há três anos, por razões familiares, me mudei para o Brasil (Barreiras, Bahia). Aqui, continuo a minha atividade como consultor/pesquisador na área de comunicação e marketing, especialmente em São Paulo, e como docente, no Instituto Europeu de Design (IED, Rio de Janeiro e Brasília), a Universidade Dom Pedro II de Barreiras, a universidade IESB de Brasília, e a FAESA de Vitoria (Espírito Santo).
Jornal Nova Fronteira