A praga que ameaça o saboroso café colombiano
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Se você pousasse em Bogotá na década de 1960, uma das primeiras coisas que veria ao sair do aeroporto seria provavelmente um outdoor gigante. Nele, estaria escrita a seguinte mensagem: "A ferrugem do café é o inimigo. Não traga material vegetal do exterior".

Fonte BBC BRASIL.com

Se você pousasse em Bogotá na década de 1960, uma das primeiras coisas que veria ao sair do aeroporto seria provavelmente um outdoor gigante. Nele, estaria escrita a seguinte mensagem: “A ferrugem do café é o inimigo. Não traga material vegetal do exterior”.

Foi um dos primeiros alertas sobre um problema que tem ameaçado o café colombiano desde então.

A ferrugem do cafeeiro é uma doença com o poder de paralisar, e até mesmo eliminar, o que é o produto nacional do país, a base de uma de suas maiores indústrias e uma das suas mais importantes fontes de moeda estrangeira.

Só no ano passado, as exportações de café corresponderam a US$ 2,4 bilhões (R$ 7,9 bilhões, na cotação atual), e a 7,7% de todos os bens que a Colômbia vendeu no exterior. Isso faz do país o terceiro maior produtor de café do mundo.

Em outras palavras, se a ferrugem se espalhar pelo território, levará à queda da oferta global e afetará o preço do café em todo globo.

É por isso que, durante as últimas décadas, cientistas colombianos estão envolvidos em uma batalha contra a praga, organizada a partir de um pequeno laboratório nas montanhas do país.
Ataque na Ásia

A ferrugem do café atormenta os fazendeiros há mais de um século. Quando uma árvore é infectada, suas folhas soltam um pó marrom e fino, como o produzido pela oxidação do ferro.

A doença, causada pelo fungo Hemileia vastatrix , também descolore as folhas, que passam do verde claro para o amarelo acastanhado. No final, a árvore perde todas as folhas, bem como a capacidade de produzir grãos.

Se não controlada, a doença pode ter consequências dramáticas. No final do século 19, Sri Lanka, Filipinas e outros países do Sudeste Asiático eram os principais exportadores de café do mundo. Em questão de décadas, a doença levou-os a praticamente parar o cultivo do produto.

Historiadores sugerem que esse fato ajuda a explicar por que hoje os britânicos preferem o chá. “O Sri Lanka deslocou-se para a produção de chá”, já que o café não era mais lucrativo, explica Aaron Davis, chefe da pesquisa sobre café do Royal Botanic Gardens, Kew (Jardim Botânico Real de Kew, em Londres).

Por sorte, para os produtores asiáticos, o Reino Unido se interessou em mudar o paladar da população quando o fornecimento de café diminuiu.
Arábica versus robusta

A ferrugem do café é uma preocupação para a Colômbia em especial porque ataca o tipo de café do qual o país depende – e que os amantes do produto se acostumaram a beber.

O café que consumimos hoje vem principalmente de duas espécies.

Uma delas é o café arábica ( Coffea arabica ). Sua semente produz uma bebida deliciosa e delicada que é vendida a bons preços nos mercados internacionais. É ela que tornou o café colombiano tão famoso.

A segunda é o café robusta ou conilon, como é conhecido no Brasil ( Coffea canephora ). É uma árvore mais forte, com folhas mais resistentes e mais barata de cultivar e colher. Tem um gosto mais amargo e não é muito atraente para os conhecedores do café. Portanto, não é tão apreciada pelo mercado quanto o arábica.

Como resultado, o conilon representa apenas 37% da produção mundial do grão, de acordo com a Organização Internacional do Café.

Infelizmente, a ferrugem ataca o arábica mas não o robusta. A Colômbia exporta apenas a primeira espécie, então fazer uma mudança no plantio nunca foi uma opção.

Na década de 1960, uma equipe de cientistas de um laboratório chamado Cenicafe iniciou os trabalhos para encontrar uma solução inspirada nas melhores características das duas espécies – mas a saída não era tão fácil quanto parecia.
O laboratório no topo da montanha

Para chegar ao Cenicafe, é preciso dirigir até o topo de uma montanha. As estradas sinuosas podem deixar o visitante enjoado, se ele não estiver acostumado às curvas. O laboratório fica lá em cima para proteger os resultados de pesquisas das forças da natureza: o prédio anterior foi inundado após a erupção de um vulcão em 1985.

O laboratório foi criado em 1938 pela Federação Nacional de Cafeeiros da Colômbia (também conhecida como Fedecafe), a associação da indústria no país, e é considerado um centro de comando para a ciência do café.

“O Cenicafe nos permitiu continuar competitivos e diminuir os riscos”, explica Hernando Duque, diretor técnico da Fedecafe. As pesquisas ajudaram a domesticar e a viabilizar muitas das variedades de alta qualidade que o país cultiva – e que o mundo aprecia.

Hoje, o trabalho dos pesquisadores é considerado referência na luta contra “a ameaça mais aguda ao café nas Américas”, como define Michael Sheridan, diretor de compras na Intelligentsia Coffee Roasters, um importador de café dos Estados Unidos.

Para salvar o café da Colômbia, na década de 1960, os cientistas da Cenicafe perceberam que precisavam criar novas variedades que pudessem herdar o sabor e o aroma do arábica colombiano, assim como os genes de resistência do robusta.

A fim de atingir a combinação, eles deveriam arranjar esses genes em outro lugar, já que as duas espécies geralmente não se cruzam. A solução viria do outro lado do mundo.

Do Timor, com amor

Em algum momento da história recente, um fenômeno estranho aconteceu no Timor Leste. Na pequena ilha do Oceano Índico, no meio do caminho entre Indonésia e Austrália, os cafés arábica e o robusta se uniram. Como resultado, o híbrido do Timor nasceu.

Este híbrido natural foi encontrado em 1927 e começou a ser colhido em 1940. Não é um ótimo grão para degustação, mas tem uma característica crucial: ao contrário do robusta normal, ele pode ser cruzado de novo com diferentes tipos de arábica e transmitir-lhes a resistência à ferrugem.

Os centros de pesquisa do café em todo o mundo começaram a repetir esse processo, mas havia um problema. O resultado não era muito saboroso, o que representava um fracasso iminente. Se as novas variedades não valessem pelo menos o mesmo que as anteriores, os produtores não mudariam suas plantações.

Foi nesse contexto que os esforços do Cenicafe para combater a ferrugem tiveram início, em 1968. A equipe sabia que a doença, presente no exterior, chegaria à Colômbia em breve, e instaurou um projeto para criar cultivos de cafeeiros resistentes à praga.

Mas o trabalho não se resumia a misturar espécies. O empenho real consistia em cruzar cinco gerações de árvores e selecionar aquelas que proporcionariam um sabor melhor e um aroma mais delicado, bem como boa produtividade e resistência a diferentes tipos de fungo Hemileia .

Em 1980, o centro lançou sua primeira junção da caturra – a variedade do arábica dominante no país – com o híbrido do Timor. O resultado foi chamado de colombia, e era bom o suficiente para que fosse bem aceito pelos produtores e compradores. Ele ainda está em muitos cafezais do país.

A novidade veio a tempo. Três anos depois, a ferrugem foi identificada pela primeira vez nos cafezais colombianos.
Um alvo em evolução

Alcançar a variedade colombia não foi o fim da guerra contra a praga. Desde então, o fungo Hemileia vastatrix evoluiu, e encontrou uma maneira de infestar algumas das árvores consideradas imunes. Enquanto elas mantiverem apenas resistência parcial, o fungo inevitavelmente a quebrará.

Há também a ameaça das mudanças climáticas. As temperaturas no período mais frio do ano estão subindo, o que, segundo alguns cientistas, reduz o tempo que o fungo leva para atacar as folhas uma vez na árvore. Como resultado, futuras epidemias podem ser mais longas e destrutivas.

Com isso em mente, a Cenicafe desenvolveu outras variedades. Em 2005, o centro lançou uma semente chamada castillo, em homenagem a Jaime Castillo Zapata, o principal cientista por trás do desenvolvimento do colombia. Em 2016, surgiu uma terceira variedade, a Cenicafe 1, que aumentou a resistência do cafeeiro a outras doenças.

A ideia principal é tornar mais difícil para o fungo quebrar completamente a resistência das árvores. Isso é alcançado por meio da inclusão de muitos genes diferentes que são invulneráveis a praga. Se um deles é derrotado por uma nova mutação de Hemileia , restam outros.

Ao aumentar a reserva de genes, os cientistas também desejam proteger as lavouras de novos riscos. “Se você reduzir a diversidade genética, tem menos resistência ao clima, a pragas e a doenças”, explica Davis, do Royal Botanic Gardens, Kew.

A falta de diversidade mostrou-se desastrosa para outras culturas comerciais. A maioria das bananas vendidas hoje no mundo é clone de uma única planta chamada Cavendish, cultivada inicialmente no Reino Unido no século 19.

Não era o fruto mais gostoso, mas era resistente ao fungo que eliminou a variedade mais popular do produto em meados do século 20, o Gros Michel. O fungo mudou e agora pode matar a Cavendish, o que significa que a extinção da banana como conhecemos é uma possibilidade.

Diferentemente dos estudiosos da banana, os cientistas do café parecem ter ouvido o aviso. Em um futuro distante, quando a ferrugem derrotar as variedades castillo e colombia, espera-se que outras continuem a batalha contra a doença.
Convencer os produtores

No entanto, se a ferrugem predominar, também haverá custos humanos. A indústria do café da Colômbia emprega cerca de 730 mil pessoas, a maioria delas nas pobres áreas rurais do país.

Michael Sheridan, diretor da empresa Intelligentsia, passou muitos anos no interior da Colômbia e diz que viu como pequenos cafeicultores apostam tudo o que têm para conseguir um boa produção. Eles assumem riscos altos, e se algo der errado, suas famílias pagam caro.

Davis acredita que variedades como a Castillo tornaram o café viável para pequenos agricultores, que agora têm uma opção razoavelmente barata e menos arriscada. “Não é uma questão de luxo. É uma questão de necessidade”, diz.

Mas criar uma nova semente é apenas parte da história. Fazer com que os produtores mudem suas lavouras para as variedades resistentes pode ser o mais difícil.

Um único arbusto de café pode dar frutos no seu pico de produtividade por até oito anos – isso significa que, após serem lançadas, a maioria das sementes não são adotadas imediatamente pelos cafeicultores.

Além disso, muitos produtores têm apego emocional às variedades que cultivam. Eles conhecem as peculiaridades de suas árvores, seus ciclos e seu comportamento exato nas fazendas. Mesmo quando a castillo é cultivada de maneira semelhante à caturra, para alguns fazendeiros plantar uma nova semente é comparável a hospedar um estranho em casa.

A mudança também tem um custo financeiro. Como um time de pesquisadores de café da América Latina escreveu em um artigo recente sobre a epidemia de ferrugem, a substituição de variedades requer um grande investimento inicial e devolve zero rendimento “ou rendimentos muito baixos durante pelo menos os dois primeiros anos e, portanto, (gera) uma renda muito reduzida”.

A Colômbia apresentou uma estratégia para superar esses obstáculos. A Fedecafe oferece subsídios e empréstimos aos agricultores para ajudá-los a comprar sementes resistentes, além de dar assessoria técnica sobre seu cultivo.
Ameaça iminente

Mesmo com todas essas medidas, a doença ainda é uma ameaça iminente à indústria do país. Um surto em 2008 conseguiu destruir um quarto da colheita anual colombiana. Desde então, a Colômbia acelerou seus esforços para convencer os agricultores a plantar a Castillo.

Hoje, de acordo com os números da Fedecafe, 76% de todos os cafeeiros colombianos são pelo menos parcialmente resistentes à ferrugem, resultado alcançado após empurrar a nova variedade aos produtores.

E enquanto outros países viram seus cultivos diminuírem pela metade em surtos recentes, a Colômbia mantém o alcance da doença em apenas um dígito.

É por isso que a maioria das pessoas no mundo do café, de produtores e cientistas até compradores, considera os esforços do país como os melhores do mundo na luta contra a ferrugem.

No entanto, nem todas as ações são elogiadas – o sabor das novas variedades não foi universalmente aprovado.

Uma vez por ano, na frente de um painel de cuppers (os provadores experts da indústria), cafeicultores colombianos colocam todo seu trabalho à prova. Seu objetivo é alcançar um número mágico: 80.

Os provadores classificam o sabor do café de acordo com uma pontuação que vai até 100 – avaliando fragrâncias, corpo, doçura e outros critérios. Uma classificação de 80 é o mínimo para um café ser considerado “especial” e, portanto, ser vendido a preços mais altos do que a média do mercado. Alguns compradores são ainda mais rigorosos: exigem 83, ou até mesmo 87 pontos.

Claro, eles pagam recompensas correspondentes à qualidade extra. Além disso, a nota confirma o domínio dos agricultores sobre seu ofício e os inclui na elite dos produtores.

“É muito difícil chegar lá”, diz Mauricio Castaneda, o filho mais velho de uma família de cafeicultores. “Você precisa cuidar de muitos pequenos detalhes.” Em 2016, apenas 17% do café exportado pela Colômbia atingiu esse patamar.
Sabor especial

Algumas pessoas no mercado do café pensam que a variedade castillo, resistente à ferrugem, não consegue chegar ao nível “especial”. Durante anos degustadores têm se queixado da menor qualidade do castillo em relação ao caturra – uma reclamação que poderia afundar sua viabiliade entre os agricultores.

Essa tem sido uma questão controversa dentro da comunidade. Por exemplo, para Alejandro Cadena, CEO da Caravela, uma empresa de comércio de café, “Castillo não é a variedade mais adequada para mercados especializados e de alta qualidade”. Ele diz que o grão pode ter notas de borracha, principalmente quando acontecem falhas no processo de produção.

Isso o afasta do mercado mais sofisticado, afirma Cadena. “Mas para (fins) mais comerciais, de alto volume, a castillo é uma excelente variedade”.

Outros, como Michael Sheridan, discordam dessa análise. Ele baseia seus argumentos em um estudo que realizou durante a safra de 2014 em Nariño, um dos estados colombianos de cultivo de café. No experimento, degustadores experientes testaram as duas variedades e não encontraram diferenças significativas.

Enquanto Sheridan é cauteloso ao afirmar que a pesquisa não pode ser expandida às demais regiões do país nem a safras de outros anos, ele ressalta que o mercado dá, sim, sinais de apreciação pelo castillo.

Segundo Sheridan, os melhores baristas o escolhem em competições, e o grão tem prestígio entre compradores internacionais. “É cada vez mais difícil na Colômbia, ao buscar o café de pequenos proprietários, encontrar lotes que não tenham castillo entre neles”, diz.

O castillo também é a variedade do coração de Eduardo Florez. O empreendedor colombiano tem uma banca no Borough Market, famoso mercado de Londres, onde vende o café que torra em sua garagem em Brighton (a 86 km da capital). Como parte de seu negócio, Florez compra pequenos lotes e diz ter encontrado castillos muito especiais.

“Uma vez achei um que tinha notas de pêssego”, ele observa. “Imagine o quão delicado é isso!”

Na garagem da Florez, a reportagem da BBC decidiu fazer sua própria degustação. Quatro amostras foram provadas sem qualquer informação o que era cada uma.

Uma deles era complexa e mereceu vários goles: a acidez e a doçura frutadas faziam uma espécie de dança, na qual cada sabor não cancelava, mas complementava e aprimorava, o outro.

A segunda tinha gosto de escritório, por assim dizer: parecia o tipo de bebida ingerida apenas pela cafeína. As últimas duas eram intermediárias, ficavam em algum lugar entre os extremos.

Mas qual foi o favorito? Qual café tinha os sabores frutados e a doçura? Foi o castillo.

Jornal Nova Fronteira